Simm

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sábado, 10 de março de 2012

Diamante Negro

Pensando cá comigo e relembrando os últimos acontecimentos pensei. Oras, sou filho de um pai negro, de uma mãe com traços indígenas levemente fortes, com certeza não sou branco! E nem queria sê-lo. Deus é mais e me tira dessa.
Outro dia estava no corredor de uma faculdade onde encontrei um colega de curso, apenas um mero colega, aqueles que desfrutamos apenas do coleguismo e mais nada, até por que o sujeito não se dá muito com coisas simples como cultivo de uma possível amizade verdadeira. Como ele mesmo faz questão de dizer: “Eu gosto é do dinheiro mesmo, eu gosto é do poder. Eu sou fascista. Meu negócio é empreender”. Eu diria melhor, não, você é um imbecil mesmo. Acho que calharia melhor em seu currículo. Vê-se claramente no jovem mancebo o tilintar das anteninhas. Isso quando pinta alguma oportunidade boa. Tá certo, cada um pensa da forma que quiser não é mesmo? Não sou eu quem vai dizer a ele o que ele deve fazer ou não, a menos que me peça opinião eu não direi uma só palavra. O silêncio mata. Assim como as palavras também. Seus dois olhos brilham com uma luz forte, perigosa até, e passa um pente fino em ti da cabeça aos pés. Claro que o instante foi rápido, mas deu pra sentir o feeling do olhar. Então interpela: “Cara, você é moreno né? Você tem a pele escura, bem escura”.  Achei a pergunta tão idiota que respondi na bucha: “claro que não sou branco. Meu pai é negro, minha mãe é quase uma índia, muito linda por sinal”. Senti que o jovem mancebo ficou meio sem jeito, mas continuava repetindo algumas frases assim meio confusas de um tanto porque eu nem estava ali na hora, minha mente estaria num tópico intrigante de um projeto que estava escrevendo, portanto não me importei com aquilo naquele momento e a conversa acabou nem sei como, tem hora que me sinto mecânico, e isso me salva várias vezes. Dou bom dia, bom dia, boa tarde, boa tarde, tudo ótimo, tudo bem, tá fazendo calor, choveu muito em Minas Gerais, e assim vai, com exceção de alguns papos bem interessantes (mas isso é bem às vezes) quase sempre estou com os leprosos. Risos. Depois passou o tempo e de repente me chegou à cabeça esse episódio, sei lá por que cargas d’água, vai ver foi por que lá no meu inconsciente estaria eu incomodado de não ser branco, affe, que merda seria se isso fosse verdade. Lembrei rapidamente de várias coisinhas sobre esse assunto tão chato por vezes que é a questão da cor. Chico Buarque de Holanda é pai de Silvia Buarque, atriz amiga de Bebel Gilberto e casada com o compositor Carlinhos Brown. Chico numa entrevista conta um episódio dessa natureza, conta que Silvia e Carlinhos tiveram que se mudar do condomínio em que residiam por causa das perseguições dos vizinhos. Ele conta que chegou a tal ponto a situação que xingavam Carlinhos quando este saía do elevador e assim por diante, insultos de toda maneira, o camarada já tá até calejado de tanto preconceito. Conta Chico que sua filha Silva achou que deveriam se mudar, e assim o fizeram.

O caso deu até jornal. Chico se lembra de uma ocasião em que estava num café no Rio de Janeiro e duas senhoras de cabelos amarelos urravam horrores na mesa ao lado dizendo: “Porque eu sou BRANCA! Eu sou branca! Não gosto de preto”. Chico ri e pensa consigo mesmo: “Será que essa senhora não vê que ela não é branca? Ela não é branca! Ninguém no Brasil é branco, é muito difícil se achar um branco verdadeiramente no Brasil. Ainda mais no Brasil que é um país totalmente miscigenado. Será que aquela criatura não percebe que ela tem os cabelos amarelos, e que corre em suas veias sangue escravo?! Quanta ignorância. Ela tem a pele branca, sim lá isso é verdade, mas ela não é branca”. Então recordei de um vídeo muito engraçado que era uma paródia de uma música dos Racionais que dizia assim: ‘O mundo inteiro é preto, um milhão e oitenta e cinco mil pessoas no Brasil são pretas, Oswaldo Montenegro, Fernanda Montenegro, Diamante Negro’.  

quarta-feira, 7 de março de 2012

ANTI - TUDO

Está preso, dividido em dois pedaços. Ou seriam três? Mil pedidos me esperam respostas, mil protocolos esperam respostas.
De um lado estão os professores que roubados e perseguidos clamam por socorro, pedem o apoio da população para juntarem forças e lutar contra o dragão que se traduz num governo autoritário, cego e surdo que é o do estado de Goiás. Do outro lado estão a vida boa, as festas da gama “sadia”, que convoca a presença para com eles desfrutar da comida e bebida oferecida para “acalmar” os ânimos e relaxar esquecendo a realidade. Me sinto na Roma Antiga, antiguíssima! É duro tragar.
Vários sinais apitam como alertas. 3 alertas, 4 alertas, uma denúncia, mil mentiras, várias desculpas. É preciso estar com a mente aberta, é preciso estar atento e forte, pois a pradaria pertence aos jovens! Sempre. Enquanto eles brindam suas taças comemorando mais uma ação me torno mais anti. As medidas autoritárias nos tornam mais anti, anti-tudo!! Políticas anti-povo nos forçam a partir pra luta. A possibilidade eminente de um Goiás mais justo sem coronelismo, sem esgoto aberto, sem buracos/verdadeiras voçorocas que um dia foram ruas, estradas, sem a especulação de toda sorte, sem descaso com a saúde pública tão importante me faz crer que é só uma questão de tempo e de luta para haver a transformação verdadeira em todos os sentidos.

Esse texto é dedicado à luta e à GREVE dos professores da Educação de Goiás e do Brasil!!!
VIVA OS PROFISSIONAIS DA EDUCAÇÃO!!
LIBERDADE É DIREITO SEU E DEVE SER EXERCIDA SEMPRE!!

Apoie a GREVE, seus filhos não ficarão mais burros se ficarem sem aulas 6 meses! Eles já estão sendo emburrecidos pelos livrinhos e pela estrutura grotesca da didática pobre e burra que o estado oferece. Venha pra luta e pense no futuro.

Fernando 07 de Março de 2012.

domingo, 4 de março de 2012

ARROZ À GREGA

ARROZ À GREGA
Antes de explicar o título irei desenvolver o raciocínio. Deu nos jornais que a greve dos professores do estado de Goiás é inconstitucional, como? Tiraram da constituição federal de 88 o direito de exercer a greve e as manifestações de repúdio ao estado quando este lhes impõem condições de semi-miséria? Quando o valor da passagem do transporte coletivo sobe, o feijão fica mais caro, o passeio, o lazer a gente tem que inventar da forma mais barata, e o piso salarial dos educadores beiram ao vexame? Olhando assim pra televisão e suas programações temos uma sensação de felicidade e satisfação quando durmo vivendo a vida de um (a) personagem idiota que tem carrão, mas não se vê ninguém pegando no trabalho árduo de todo dia pra ganhar cinco reais por dia por exemplo. Coisas de ficção. Como diz meu amigo: “fique louco, fique são”.  
Achei que se restringia apenas ao Código Florestal essas arbitrariedades, mas estava enganado, com certeza é geral o desrespeito e o não cumprimento da lei. Como diz o velho lugar comum: ‘a lei só se aplica aos ladrões de galinha pé-de-chinelo’. Mas não, os professores hoje estão travando uma luta diária contra as imposições e mentiras do estado de Goiás ao comando do excelentíssimo governador Marconi Perigo. Não vou precisar aqui os pormenores das medidas anti-povo do excelentíssimo até porque bomba na rede (internet) todos seus planos de interesse pessoal e eleitoreiro de sua camarilha que o acompanha, leia-se os telejornais vendidos de Goiânia e seus amigos deputados e vereadores lacaios e inimigos do povo com certeza Túlio Isaac ofendendo os professores na Assembleia Legislativa aos 28/02/2012 VOLTA PRA ESCOLA TÚLIO ISSAC!!!


Enquanto isso nos jornais o povo experimenta o gosto amargo de um arroz à grega sem sal! Era esse tipo de notícia que os diários brasileiros publicavam durante a sangrenta ditadura militar enquanto mães e familiares procuravam desesperadamente seus entes queridos sumidos e trucidados pela tirania do estado brasileiro bancada pelos Estados Unidos da América.

sexta-feira, 2 de março de 2012

Entrevista com Walter Valadares de Castro

Entrevista com Walter Valadares de Castro
Por: Ana Lúcia –  Jornal A Nova Democracia

AND: Por que vocês decidiram participar da luta camponesa de Trombas e Formoso?
Valter Waladares, durante a entrevista, na Universidade Federal de Goiás, Goiânia

— Nós sempre tivemos a visão de que se haveria uma revolução operário-camponesa, aqui o nosso papel era fundamentalmente com as massas camponesas. Outro fator importante era que estávamos sob o fogo da vitória da Revolução Chinesa. A Grande Marcha nos causou um entusiasmo enorme, aí houve uma guinada à luta camponesa com o Manifesto de Agosto. Nós acreditávamos que, no Brasil, o movimento camponês era o início de um movimento de libertação nacional. O estado de Goiás era eminentemente agrário e por isso o P.C.B. tinha uma tradição muito grande de lutas no campo. Tanto é que houve uma participação forte do Partido nas lutas camponesas de Ceres, Rialma, Catalão, etc. Esta lutas permitiram o surgimento de líderes camponeses importantes, que puderam ir em auxílio do movimento.

AND: Que fato deflagrou a luta?

— Os camponeses viviam na região há mais de trinta anos. Com a construção de Brasília e da rodovia BR-153, a Belém-Brasília, houve uma valorização grande daquelas terras, que antes dos camponeses ali se instalarem eram inóspitas. Então dois conhecidos e poderosos grileiros da região, o Camapum e o Peroca, resolveram grilar aquelas terras também. Eles montaram todo o grilo e compraram o juiz. Logo após a sentença do juiz, iniciaram-se as intimações para a desocupação das terras. Paralelamente, os grileiros começaram a cobrar uma espécie de “arrendo” dos camponeses porque, afinal, “eles haviam utilizado uma terra que não era deles durante anos e deveriam pagar por isto”. A ação dos grileiros dependia de quem era o camponês, de um eles tomavam toda a produção, de outros eles tomavam a metade.

AND: Como foi o primeiro contato com os camponeses da região?

— Neste tempo, nós tínhamos alguns companheiros em Uruaçu (GO), principalmente o José Sobrinho, que era o nosso grande apoio. O primeiro a tentar contato foi o Geraldo Tibúrcio, que era de Catalão e já atuava no movimento camponês. Ele foi procurar uma pessoa que tinha uma certa liderança na região, o Zé Firmino, mais ou menos em 1953, na região de Coqueiro do Galho, num dos córregos que cortava a região. Ele conseguiu ter a confiança do Firmino e eles combinaram que iriam uns companheiros daqui pra ajudar a organizar a resistência.

AND: Este contato foi feito em nome do P.C.B.?

— Não, foi feito em nome de uma organização de massas da qual Tibúrcio era presidente, a Associação dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas de Goiás.

AND: Em que nível estava a luta neste momento?

— Por enquanto, se dava a tentativa dos oficiais de justiça de fazer as intimações de desocupação e, ao mesmo tempo, o pessoal dos grileiros estava ameaçando buscar o arrendo. Nesse momento a principal resistência era para não entregar a produção para os grileiros.

AND:Quando vocês sentiram que a resistência iria se aprofundar?

— Na verdade, houve um episódio, o do Nego Carreiro, que precipitou um pouco as coisas. O Nego Carreiro era um camponês, natural de Morrinhos (sul do estado), que havia se fixado no Coqueiro de Galho. Ele afirmava que não iria sair daquelas terras e, muito menos, entregar o que ele tinha conseguido produzir com tanto trabalho; dizia que era uma injustiça e fazia muita propaganda para os outros camponeses, no sentido de resisitir à ofensiva dos grileiros. Ocorreu que o Peroca, juntamente com um sargento — que já estava comprado para eliminar o Nego — e alguns soldados foram até a posse do Nego Carreiro. Como ele não estava, mandaram um menino ir chamá-lo. Quando o Nego chegou, o grileiro anunciou qual era o seu intento. Não sei o que o Nego disse, mas levou o sargento a sacar o revólver. Só que o Nego atirava muito bem e tinha um belo 38. Neste momento, o Nego caiu no chão, acertou o sargento no meio da testa e feriu um soldado. O resto do pessoal do grileiro correu, deixando o corpo do sargento abandonado, até que os próprios camponeses o enterraram. As coisas se precipitaram. Aí sentimos a necessidade de mandar logo as pessoas para ajudar. Tínhamos certeza de que viria uma resposta da polícia e dos grileiros, estes inclusive já estavam recrutando um grande número de jagunços. Neste momento, sentimos que a resistência iria se aprofundar, se tornar armada. Aí foi para lá inicialmente o Geraldão (líder camponês da Barranca, região da Colônia agrícola de Ceres); o Soares e o Zé (antigo mascate, ligado ao movimento camponês). Lá, eles começaram a organizar a associação, conversaram com os camponeses, fizeram algumas reuniões. Nesta época, nós prevíamos que as coisas se complicariam ainda mais porque era tempo de colheita e o Camapum estava mobilizando os jagunços para confiscar a produção.

AND: Quando você foi para a região?

— Eu era secretário do Partido em Goiânia e me perguntaram se eu não queria ir para a região. Aceitei a tarefa e fomos até Anápolis (55 km de Goiânia), onde um companheiro tinha um caminhão que nós enchemos de armas e munições. Logo após minha chegada, começamos a falar para os camponeses da necessidade de nos prepararmos para enfrentar os jagunços. No início, tínhamos uma visão romântica, pensávamos apenas em termos de jagunços, então estava tudo bem, tudo era bom...

AND: Como foi esta “preparação para a luta armada” ?

— Nós realizamos alguns treinamentos militares, incluindo alguma coisa de tiro...

AND: Nesta fase houve algum combate?

— A primeira experiência dos camponeses foi no início de 1954. Nesta época soubemos que os grileiros estavam enviando um caminhão para tomar a produção dos camponeses, na região do Coqueiro de Galho. Combinamos de fazer uma “tucaia” no colchete que havia na estrada porque, necessariamente, eles tinham que parar o caminhão para abrir o colchete. Aí ficaria mais fácil pegá-los. Dividimos em dois grupos: um foi fazer a “tucaia” e o outro ficou a uma certa distância com apoio logístico. Os camponeses decidiram que o melhor atirador deveria atirar na “boléia” do caminhão para atingir o motorista e o oficial graduado e outros atirariam na carroceria para atacar os jagunços. Quase tudo ocorreu. O tiro na boléia foi um tiro certeiro porque era mais consciente. Então morreu o filho do Camapum e um outro jagunço. E o pessoal atirou naqueles jagunços que estavam lá em cima. Para você ter idéia, foi uma quantidade imensa de tiro, mas não acertou ninguém. O motorista deu uma ré, saiu com os pneus furados e se mandou. Os camponeses expulsaram os jagunços.

AND: A expulsão dos jagunços foi uma grande vitória. Quais as consequências?

— Depois deste combate as coisas mudaram. Analisamos que havíamos de nos preparar melhor e buscar mais apoio. Muito provavelmente, viriam, não só os jagunços, mas a polícia no próximo ataque. Também aumentamos a politização. Falávamos do programa da Revolução Brasileira, da vitória da Revolução Chinesa, líamos um texto do Presidente Mao Tsetung, publicado na Revista Problemas, sobre a guerra de guerrilha etc. Nos reunimos e concluímos: temos que nos preparar para uma luta de outro nível. Nós tínhamos combinado com a direção do Partido que tão logo chegassem as notícias do primeiro choque, o Partido mandaria reforço de armas e, se possível, de mais alguns quadros dirigentes para uma cidade à esquerda de Porangatu, na rodovia, lá em Mutunópolis, porque nós tínhamos um companheiro lá que era dono de uma farmácia. Decidiu-se que iria lá um camponês que conhecia a região muito bem, além de mim.

AND: Foi aí que ocorreu o famoso episódio do “mimeógrafo”, pelo qual você ficou conhecido?

— A história não foi bem assim. Andamos uns 70 Kms a pé. Chegamos à casa do companheiro Edson. Combinamos que ele iria ver se os companheiros de Goiânia estavam chegando, mas os companheiros não chegavam... Vieram dois companheiros numa caminhonete de um motorista daqui (Goiânia) trazendo armas, munição, miméografo, papel, etc. Parece que eles ficaram meio nervosos e, em alguma coisa que não existia, eles viram um piquete de soldados na estrada que ia para Mutunópolis e aí pararam, descarregaram a caminhonete e fizeram uma camuflagem ao pé de uma árvore. Como havia um companheiro da direção estadual, ele sabia que havia uma base do Partido naquela região de campo e foi lá fazer o contato. Quando o contato conseguiu ir à farmácia nos procurar eu já havia me atrasado vários dias. Fui à fazenda onde estavam os outros militantes e decidimos quem iria tentar furar o cerco para levar o material. No fim, foram quatro, cinco pessoas. Aí andamos mais 70 Km a pé, carregando um monte de armamentos, capangas cheias de balas de fuzil, papel, tinta e o danado do mimeógrafo. Quando chegamos, com vários dias de atraso, os companheiros não estavam mais no ponto combinado e já havia polícia e jagunço para todos os lados. No final, conseguimos chegar bem com os materiais.

AND: Houve algum confronto com os policiais e jagunços que haviam no local?

— Não. A polícia queria intimidar os camponeses, principalmente as mulheres, dizendo “se o seu marido abandonar esses comunistas, não vai haver nada, mas se não abandonar vai morrer”. Outros diziam que o governo ia soltar uma bomba atômica, que todo mundo iria morrer. Depois disso, a cada manhã, víamos que duas, três famílias haviam deixado a luta. Chegou a um ponto em que estávamos reduzidos a oito, todos de fora.
AND: Como vocês conseguiram reverter a situação?

— Montamos acampamento na posse de um companheiro e ficamos lá até fazermos contato com o Zé Porfírio. Ele era um líder em Trombas, já tinha até reivindicado as terras do Formoso ao Getúlio... Depois que fizemos este contato combinamos de concentrar o trabalho na região de Trombas.

AND: Como foi a construção do trabalho na região de Trombas?

— Começamos a trabalhar no dia seguinte. A nossa meta era conseguir a confiança dos camponeses para que eles aceitassem o nosso apoio. A proposta era que os camponeses se unissem numa associação para resistir aos grileiros e à polícia que estava “acantonada” no Formoso. Fazíamos reuniões no fim de semana. Imprimíamos um folheto de acordo com a realidade para discuti-lo com os camponeses, nos dividíamos em duplas e íamos para os dois lados do córrego. Os soldados e os jagunços estavam por todos os lados. Então, entrávamos pelos fundos das casas dos camponeses. Como quase todo mundo ali era analfabeto, a gente lia o panfleto e fazia uma explicação para a família e deixava uma cópia na casa. Eles o escondiam embaixo do colchão e quando chegava outra pessoa que soubesse ler, eles davam com todo o prazer para que a pessoa pudesse lê-lo. Fizemos este trabalho de massas, mais ou menos clandestino, por alguns meses. O trabalho de politização das massas camponesas dependia, também, de conseguir furar o cerco policial e dos jagunços que cercavam as redondezas.

AND: E a criação da associação?

— Quando sentimos que já havia uma aceitação dos camponeses e, paralelamente, apoio de outras localidades, marcamos uma reunião para criar a associação dentro do Formoso, onde estavam as tropas da polícia. Os que não eram prata da casa como eu, o Geraldão, o José Soares não participaram da reunião para evitar provocações. Montamos ao lado um acampamento de apoio logístico, armado. No caso de haver alguma resistência, a gente poderia apoiar. O Porfírio entrou à frente dos camponeses no Formoso. Fizeram comícios e criaram a associação. Passamos, então, de um movimento clandestino de militantes para um movimento de massas, uma associação que tinha vários elementos que não tinham nada a ver com o Partido.

AND: Em que consistiu o apoio que os camponeses receberam?

— O trabalho para conseguir aliados tinha se concentrado em levantar o movimento estudantil e o sindicato dos trabalhadores da construção civil. Eles faziam manifestações de apoio aos camponeses... Na Assembléia Legislativa nós tivemos o apoio de alguns deputados que não tinham nenhuma participação nos movimentos populares, mas que eram contra o grilo e que formaram a comissão, que concluiu pela existência do grilo e a necessidade do governo intervir. Um deles, mais progressista, sobrevoou a área, soltando boletins de apoio aos camponeses. Após este ato de ousadia chamamos a reunião. Tínhamos também, a nosso favor, o próprio procurador do Estado, o Everardo de Souza, que não nutria nenhuma simpatia com o movimento, mas era contra a grilagem e tinha entrado com uma ação a favor da retomada das terras pelo Estado.

AND: Quanto à associação, como os grileiros reagiram ?

— Depois da criação da associação voltamos a nos preparar para um choque ainda mais violento com a polícia e os jagunços. Mas o nível de organização já era bem maior, englobando as massas. Organizamos piquetes e quando a polícia e os jagunços voltaram a associação já tinha força para enfrentá-los. Aí ninguém mais teve sossego.

AND: Que tipo de organização enfrentou a reação nesta nova fase?

— Instalamos duplas e sempre com a preocupação de não travar combates longos, não liquidar a polícia, e a nossa preocupação era baseada na experiência do Presidente Mao Tse-tung, de que quando o inimigo ataca, nós recuamos; quando o inimigo estaciona, nós fustigamos; quando ele recua, nós atacamos. Houve até justiçamento de um informante da polícia — com julgamento, é claro.

AND: A Guerrilha de Trombas e Formoso foi uma das mais organizadas e consequentes lutas camponesas do período, e até por isso, a única vitoriosa. Houve um acordo com o governo para que os camponeses ficassem com as terras?

— Os procuradores do Estado já tinham dado um parecer contra o registro, considerando a grilagem. O juiz de Uruaçu estava comprometido (corrupto). Os procuradores tinham entrado, em nome do Estado, pela anulação da venda. E como o movimento aqui na cidade fez muita pressão, o governo acabou por distribuir as terras. Temos que considerar que era um
movimento nitidamente de grileiros e como estava clara a existência do crime era muito mais fácil, do que por exemplo, se fosse um movimento na fazenda do Ubirajara Caiado (tio do Ronaldo Caiado) que mantinha regime de escravidão. Aí, de forma alguma iriam permitir que o governo cedesse. O grileiro tem menos força que o latifundiário.

AND: Como se organizaram os camponeses após a conquista da vitória? Há quem diga que se instalou na região um verdadeiro “governo popular”...

— A Associação dos Lavradores do Formoso e de Trombas era realmente a grande força. Devido à vitória do movimento, o prefeito era da associação e a maioria da câmara dos vereadores. Naturalmente, a associação dominava a política na região.

AND: Estes cargos políticos eram reconhecidos pelo Estado?

— Era tudo legal. Os camponeses receberam até o título da terra.

AND: O Zé Porfírio foi o líder mais conhecido da luta camponesa. Pode nos falar um pouco sobre ele?

— Eu, por sorte, tinha como companheiro de dupla o Zé Porfírio. Andava com ele a semana inteira. Ele era um tipo formidável, muito inteligente, corajoso. Sabia ler, escrever. Ele era um verdadeiro dirigente de massas. Eu me lembro que quando a gente andava lá pelo Formoso, eu tinha a preocupação de dar ao Porfírio algumas noções do marxismo-leninismo. Nós andávamos muito e conversávamos muito também. Nós tínhamos que entrar no mato, arrumar um lugar para dormir, esperar o dia clarear para poder sair novamente. Então, nós tínhamos muito o que conversar. Ao mesmo tempo em que eu politizava o Zé Pofírio, eu me deliciava com as histórias dele. Ele conhecia quase toda a literatura de cordel, os trovadores do nordeste. O que mais me marcou foi uma vez, antes da gente criar a associação, em Trombas. Ao entrarmos para distribuir os folhetos na segunda casa, o morador falou: “A polícia está lá na pensão”. Ele disse: “Nós não podemos mostrar medo. Nós temos que continuar e temos que entrar na pensão”. Quando chegamos na pensão, o Zé Porfírio fez um pequeno discurso, deixamos os panfletos e saímos. O Zé era um camponês de uma coragem a toda prova, espetacular.

AND: Durante a luta camponesa de Trombas e Formoso houve a elevação da consciência da luta pela terra (individual, econômica), para a destruição de todo o latifúndio, mais política ?

— Não. A luta se restringiu, acabou com a conquista do pedaço de chão por cada camponês. Mas o nosso sonho inicial era o de transformar a luta dos posseiros do Formoso no início da luta armada pela libertação nacional. Se em relação ao nível de consciência nós não tenhamos conseguido dar um passo à frente, do ponto de vista da influência tivemos um trabalho muito importante. No Formoso existia o problema da posse da terra e da luta contra os policiais e jagunços. Mas a luta contra o latifúndio, como um todo, acabou por não ser tocada. O surgimento da luta e a vitória dos camponeses do Formoso, a conformação da associação praticamente como o órgão dirigente do município, tudo isso repercutiu em todas as cidades do estado. Em outras cidades foi mais fácil criar uma associação porque eles sabiam da vitória do Formoso e se estabeleceu um clima amistoso.

AND: Apesar da luta de Trombas e Formoso não ter conseguido se transformar no início do movimento de libertação nacional, você ainda acredita que a Revolução é única saída para a miséria em que está mergulhado o nosso povo?

— A Revolução não é um plano de vida individual, é uma necessidade coletiva. Independente de eu estar vivo, a Revolução vai acontecer porque é uma necessidade do povo brasileiro para que possa viver com dignidade e de forma justa.

Uma entrevista engajada e polêmica de Mário de Andrade

Por Euller de França Belém – Jornal Opção – Goiânia.
A entrevista de Mário de Andrade foi concedida ao jornalista, escritor e biógrafo Francisco de Assis Barbosa, em 1944. Foi transcrita no livro “Entrevistas e Depoimentos” (T. A. Queiroz, 114 páginas), organizado por Telê Porto Ancona Lopez. O Jornal Opção publica o texto integral, sem nenhum corte.


1944 – ACUSA MÁRIO DE ANDRADE: “TODOS SÃO RESPONSÁVEIS!”

Os Intelectuais Puros Venderam-se aos “Donos da Vida”

Figura sempre presente nos acontecimentos literários dos últimos vinte anos, Mário de Andrade, o admirável escritos de Macunaíma, teve o seu nome bastante projetado, ultimamente, quando da publicação do seu prefácio ao livro de Otávio de Freitas Júnior – uma forte e sincera página de profissão de fé democrática, repleta de confissões e afirmações das mais corajosas já manifestadas, de público, pelos intelectuais brasileiros do momento.

Procurado por Diretrizes, em São Paulo, Mário de Andrade, na entrevista que publicamos aqui, volta a reafirmar os seus pontos de vista, condenando abertamente todos os artistas e intelectuais que, de várias maneiras, vêm colaborando com os fascistas ou para-fascistas, fatalmente, fadada a maior repercussão nacional. Em resumo, é um tremendo libelo contra a “grande parte da inteligência brasileira que se vendeu aos donos da vida”.

Reportagem de Francisco de Assis Barbosa
Especial para Diretrizes


No prefácio do livro de Otávio de Freitas Junior, Mário de Andrade escreveu umas coisas muito sérias num tom quase patético. Coisas que pareciam ser repisadas. “Eu afirmo (estou citando o grande escritor paulista) que a mocidade de hoje está de posse duma verdade. Nós todos, mas todos, intelectuais e dirigentes, sabemos que a mocidade que conta agora de vinte a trinta anos, está de posse de uma só verdade. Os que dentre esses moços desconhecem essa verdade, é porque fingem desconhecê-la. E há também muitos, os... os outros. São os sujos, que se venderam, colocando-se da banda da contra-verdade. Porém eles mesmos, eles tanto como os dignos, gritam pelos olhos, pelas mãos, pelos poros, a existência dessa verdade. E os moços estão querendo exclamar a verdade que vai chegar, mas não podem. A mocidade está engasgada e regouga surdamente. Mas não é por ignorância, por inadvertência ou displicência que a mocidade engasgou. A mocidade não se engasgou. Engasgaram a mocidade”. Tudo isso, vamos e venhamos, é grave, muito grave mesmo. As palavras são exatas, espantosamente exatas. A mocidade quer falar e não pode. Tem um osso na garganta. E é por isso que Mário de Andrade empregou tão bem o feio e desusado verbo “regougar”. Só um verbo desses para definir o estado de espírito da mocidade. Da mocidade, só? Não. De jovens, maduros e velhos. Todos “regougam”! No setor literário, acontece também uma outra coisa, igualmente espantosa. Os que não “regougam” xingam-se entre si, gastam energia bobamente. E é com infinita tristeza que a gente vê o nome limpo de um grande poeta agredido numa discussão estéril e besta, que faz lembrar a famosa “guerra do alecrim e da mangerona”. Calma, minha gente. Pra que discutir futebol e cinema silencioso, num momento destes? Essas discussõezinhas só têm servido para aumentar a confusão, que nos levou a conjugar, com um jeito esquisito e às vezes tragicômico, o infame verbo “regougar”. “Regougemos”, pois, com decência.

Encompridei esta introdução para avisar que tomei uma entrevista com Mário de Andrade, que nada tem a ver com as guerrinhas literárias, que se travam presentemente entre os “inocentes” de diversas praias cariocas. A coincidência com pessoas e fatos conhecidos é puramente ocasional e inevitável. Por isso mesmo, quero deixar bem claro que procurei o autor de Macunaíma sem segundas intenções. As palavras de Mário são duras, vão doer em muita gente. Paciência. São palavras que precisam ser ouvidas. Esta entrevista é bem uma definição de atitude do artista em face da guerra, uma espécie de Código de Ética. Poucos como o grande poeta e crítico de São Paulo estariam mais indicados para a tarefa difícil, que transformei no tema central desta reportagem. A vida literária de Mário de Andrade tem sido um lutar constante. Os artigos de crítica e polêmica que escreveu em jornais e revistas dariam para mais de seis volumes; os mais importantes deles serão publicados em livros, na edição das Obras Completas de Mário de Andrade, iniciativa da Livraria Martins. Não foi sem razão que o chamaram de “papa do modernismo”. Concordo que o apelido é bombástico mas não há dúvida que indica o papel do escritor: a sua linha de conduta, a sua ação prodigiosa, a sua fé na literatura, o seu valor moral. Por todos esses motivos, Mário deve ser considerado a figura mais importante dentre os agitadores do movimento. Mas não é só por isto. Hoje, decorridos mais de vinte anos depois da celebérrima Semana de Arte Moderna, vemos que foi uma obra que encontrou maiores ressonâncias na turma da geração mais nova, justamente os que estão agora entre os vinte e os trinta anos, os tais da “mocidade engasgada”. Creio que dizendo isto explico suficientemente o porquê desta entrevista, que julgo muito oportuna. Das mais oportunas que se poderiam fazer, neste momento.

A condição de “papa” (desculpe Mário) não dá imunidades a ninguém. Mário de Andrade não vive num altar, permanentemente endeusado pelos moços. Não vive trancado em nenhuma redoma. O escritor age, está agindo. Jamais se recusa aos novos. A sua palavra é sempre ouvida com respeito, porque parte dele. Assim foi com os rapazes de revista Clima, cujo artigo de apresentação, escrito por Mário de Andrade, encerra um grande sentido político e humano. Chama-se A elegia de Abril. Parece o título de um poema. Esse artigo é um apelo à responsabilidade. O escritor não acredita nos homens da sua geração, põe sua fé nos moços. Penitencia-se. Talvez por julgar ter realizado muito pouco é que confia tanto nos moços. Ah, os moços engasgados, que “regougam”. No entanto, Mário de Andrade já fez muito. É imensa a significação da sua obra literária, abrindo caminhos na poesia, no conto, no romance, na crítica, no folclore, na música. Principalmente nas questões de estilo e da forma de expressão literária, quero dizer na técnica de escrever. Mário de Andrade é bem um mestre das novas gerações. Mas afinal esta introdução está se tornando longa demais. E a entrevista? Vamos a ela.

A ENTREVISTA

Embora com os sinais da longa enfermidade ainda muito visíveis no rosto pálido, Mário de Andrade me pareceu remoçado quando uma dessas manhãs o procurei na sua casa da rua Lopes Chaves, no bairro da Barra Funda, em São Paulo. É uma casa simples, sem luxo. Mas está cheia de quadros, de livros, de músicas. Lhote, Picasso, Portinari, Segall. Sem falar na coleção  de desenhos e gravuras, que sobem a oitocentos, mais ou menos. E os livros? Há de tudo. A parte principal é sobre arte e literatura. As músicas estão em baixo, numa sala pequena, que tem o retrato de Beethoven. Sei que existem para mais de vinte mil peças, todas devidamente catalogadas na biblioteca de Mário de Andrade. O escritor me recebe, a princípio, numa sala de andar superior, onde vi, pela primeira vez, os quadros de Anita Malfatti: O homem amarelo e A estudante russa, que tanta celeuma provocaram nos áureos tempos do modernismo. A exposição de Anita Malfatti, considerada como o início do movimento, foi um escândalo. Monteiro Lobato escreveu um artigo violento, erradíssimo, contra a pintura. Olho bem O homem amarelo. Por mais que procure, não encontro nada demais. Sem ser acadêmico é um quadro normal. Por que teria despertado um tamanho furor em Monteiro Lobato? Aí está uma coisa que não compreendo.

— Você acha normal, não é? Isso quer dizer que não fizemos o modernismo em vão. Para a época, O homem amarelo era uma coisa louca. Poucos compreenderam, quase ninguém aceitava. Anita é uma pioneira.

A entrevista começa assim por um desvio. Encontro o escritor mais loquaz do que nunca, satisfeitíssimo com a marcha da moléstia (úlcera no duodeno, para quem quiser saber). Durante os dias que esteve de cama, um mês precisamente, Mário de Andrade não interrompeu a sua atividade jornalística, escrevendo todas as 5.as feiras um longo artigo sobre música, para a Folha da Manhã, de São Paulo. Agora escreverá com regularidade também no Correio da Manhã. Mostra-me o seu primeiro artigo, publicado no jornal carioca. É sobre Shostacovitch, o músico soviético, autor de uma sinfonia celebrando o heroísmo dos defensores de Leningrado e do Hino às Nações Unidas, composição esta mais recente, da qual ainda não tinha ouvido falar.

— No artigo de Shostacovitch, volto a tocar num velho refrão meu: a arte interessada. Acho que o artista, mesmo que queira, jamais deverá fazer uma arte desinteressada. O artista pode pensar que não serve a ninguém, que só serve à Arte, digamos assim. Aí está o erro, a ilusão. No fundo, o artista está sendo um instrumento nas mãos dos poderosos. O pior é que o artista honesto, na sua ilusão de arte livre, não se dá conta de que está servindo de instrumento, muitas vezes para coisas terríveis. É o caso dos escritores apolíticos, que são servos inconscientes do fascismo, do capitalismo, do quinta-colunismo.

Mário de Andrade fala explicado, como bom paulista.

RESPONSABILIDADE

A conversa cai na controvérsia “arte pura” e “arte interessada”. Mário de Andrade diz o que pensa a respeito:

— Até o século 18, o intelectual era um empregado dos príncipes. Vivia portanto preso aos seus Mecenas. Ele era pago para louvar.Com o século 19, veio a arte livre. O intelectual se libertou. E com a liberdade se desmandou. Tornou-se um irresponsável. Foi o seu grande erro. Liberdade não quer dizer irresponsabilidade. Isso porque entre o escritor e o público há uma relação, um compromisso. É o público, ou melhor: a sociedade, quem protege o escritor, quem lhe dá tudo, inclusive dinheiro, até o aplauso, duas coisas indispensáveis para a vida de qualquer um. Por conseguinte, também do artista. Porque eu estou me referindo a todo artista de modo geral. Não só aos escritores, prosadores e poetas, ficcionistas ou não. Mas também aos pintores, escultores, arquitetos, músicos. Todos eles, todos nós, somos responsáveis. Perante o público, perante a sociedade. O escritor então é responsável até pela grafia das palavras, quanto mais pelo que transmite por elas. Se a sociedade está em perigo, conclui-se que o escritor tem a obrigação indeclinável de defendê-la. Infelizmente não são muitos os que entre nós se capacitaram disso. Uns por não possuírem consciência profissional. Outros por não possuírem consciência de espécie alguma. Não há por onde fugir. Ninguém pode cruzar os braços, ficar acima das competições sociais. É assim com a guerra, na luta das democracias contra os fascismos de todas as categorias. A guerra não é um teatro, que a gente possa assistir comodamente, como se estivesse sentado num camarote. Todos participam da luta, mesmo contra a vontade. Queiram ou não queiram. E se é assim o escritor tem de servir fatalmente: ou a um ao a outro lado. Os intelectuais brasileiros, que continuam colaborando com jornais fascistas, precisam se convencer de que estão errados. Não é só escrever para ganhar 200 cruzeiros por um artiguete e blazonar depois que continuam livres. Não continuam, esta é a verdade. Podem ser livres no primeiro, no segundo artigo. Aos poucos mil cordões invisíveis vão enleando o pobre até que um dia ele se verá perdido. É triste de dizer. Mas é este o caso da maioria dos escritores brasileiros, que colaboram  nos jornais fascistas. Muitos desses escritores, bem sei, não são fascistas. Acabarão sendo. Pelo menos eles já estão servindo ao fascismo.

— Mas você, também, Mário, colabora na revista Atlântico...
— É verdade. Publiquei um artigo em Atlântico. Confesso que estou arrependidíssimo. Quando me dei conta do erro que estava cometendo já era tarde. Reconheço que errei. Dou minha palavra de honra que jamais cairei noutra.

EXPERIÊNCIAS

O assunto continua o mesmo.

— Já vê que falo por experiência própria. Mas quero mostrar que tenho sido coerente. Não faço arte pura. Nunca fiz. Neste particular, sinto estar em desacordo com amigos e camaradas queridos, amigos e camaradas que tenho na conta de mestres. Sempre fui contra a arte desinteressada. Para mim, a arte tem de servir. Posso dizer que desde o meu primeiro livro faço arte interessada. Naquele tempo, em 1917, se quisesse poderia ter arranjado um livro de versos menos ruim para aparecer em público. Tinha cadernos e mais cadernos cheios de sonetos e poesias, que reputava melhores que os de Há uma gota de sangue em cada poema. Mas não. Senti que precisava publicar o meu livrinho de poemas pacifistas, escrito sob as emoções da guerra de 14. Eles pareceram mais úteis que os sonetos e as poesias rimadas.

Lembro que o livro de estreia de Mário de Andrade traz o pseudônimo de Mário Sobral. Por que o pseudônimo?

— Por timidez — retruca o poeta mais que depressa. Todo mundo que me conhece sabe que eu sou um tímido. Os meus estouros não provam nenhuma coragem. São produtos da minha vida introspectiva. Vou me enchendo, enchendo. De repente estouro.

E é assim que ele me faz uma confissão interessante:

— É bem possível que eu nunca tivesse publicado uma só linha se não tivesse a certeza de que a minha literatura poderia ser útil. Não pretendia, de fato, publicar nenhum poema de Paulicéia desvairada. Até que um dia percebi que as minhas poesias tinham capacidade para irritar a burguesia. Foi o bastante. Pelo resto de minha carreira literária, observei a mesma linha de conduta. Só publico o que pode servir. Todas as minhas obras têm uma intenção utilitária qualquer. As coisas de pura preocupação estética que fiz durante algum tempo, eu destruí. Só me interessavam a mim, como aquisição de técnica pessoal.

E Mário de Andrade repete:

— A arte tem de servir. Venho dizendo isso há muitos anos. É certo que tenho cometido muitos erros na minha vida. Mas com a minha “arte interessada”, eu sei que não errei. Sempre considerei o problema máximo dos intelectuais brasileiros a procura de um instrumento de trabalho que os aproximasse do povo. Esta noção proletária da arte, da qual nunca me afastei, foi que me levou, desde o início, às pesquisas de uma maneira de exprimir-me em brasileiro. Às vezes com sacrifício da própria obra de arte. Cito, para esclarecer, o meu romance Amar, verbo intransitivo. Não fosse a minha vontade deliberada de escrever brasileiro, imagino que teria feito um romance melhor. O assunto era bem bonzinho. O assunto porém me interessava menos que a língua desse livro. Outro exemplo é Macunaíma. Quis escrever um livro em todos os linguajares regionais do Brasil. O resultado foi que, como já disseram, me fiz incompreensível até para os brasileiros. Bem sei que minha literatura tem muito de experimental. Que me importa. Disso não me arrependo.

CONSCIÊNCIA

Para Mário de Andrade, o que importa mais que tudo é agir. Daí sua admiração por Valentim Magalhães, literato medíocre, mas ativo.

— Valentim Magalhães fez o diabo. Meteu-se em tudo quanto foi movimento literário, disse-me ele.

Mas o caso do poeta de Remate de Males é muito diferente. Valentim Magalhães talvez agisse apenas em função do seu temperamento buliçoso. Mário, ao contrário, sempre agiu conscientemente. Bem que pode falar assim, quando mais uma vez se refere ao modernismo:

— Eu bem sabia que não bastava ser espontâneo. Era preciso ter consciência profissional, também. Quando empregava o “me” começando as frases, não era só pelo gosto de escrever diferente. Eu sabia o que estava fazendo. Para isso, estudei. Procurei honestamente uma maneira de escrever em brasileiro. Acho que encontrei este meio. Pelo menos, ajudei a abrir o caminho.

Você anunciou, uma vez, a Gramatiquinha da língua brasileira. Por que não publicou nunca esse livro?

— Da língua não. Da fala brasileira. Não tinha a pretensão de criar uma língua brasileira. Nenhum escritor criou língua nenhuma. Anunciei o livro, é verdade, mas nunca o escrevi. Anunciava o livro por me parecer necessário ao movimento moderno. Para dar mais importância às coisas que queríamos defender. É ainda muito cedo para escrever-se uma Gramática da língua brasileira. Eu queria prevenir contra os abusos de escrever errado. Estávamos caindo no excesso contrário, como muito bem observou  um dos redatores de Estética, não me lembro mais se Sérgio Buarque de Holanda ou Prudente Morais, neto. Estávamos criando o “erro de brasileiro”. Quando falo em escrever certo, estendo a questão até o problema ortográfico. Considero um problema de ordem moral. É mais uma responsabilidade que se acrescenta ao ofício de escrever. Não me interessa discutir se esta ou aquela é a ortografia que presta ou não. O essencial é termos uma ortografia. Que se mande escrever “cavalo”com três “l” isso não tem importância. Precisamos é acabar com a bagunça. Não há coisa mais irritantemente falsa do que a ortografia inglesa, por exemplo. Não compreendo porque a palavra “right” se escreve com “g-h-t”. No entanto assim é que é certo. Escrever de outra forma na Inglaterra ou nos Estados Unidos é diploma de ignorância. Aqui, não. Tomo mundo escreve como bem entende. O Estado da Bahia tem “h”. A baía da Guanabara não tem. Acredito que a questão ortográfica tem contribuído muitíssimo para a desordem mental no Brasil. E de certa forma tem impedido a muito escritor de formar uma verdadeira consciência profissional.

PARALELO

Voltamos novamente a falar sobre “arte interessada”. Quero saber que relações existem entre “arte interessada” e liberdade de pensar e de escrever, no entender de Mário de Andrade. Aí o escritor não quis mais conversar. Preferiu escrever a resposta. No dia seguinte fui buscá-la. É a seguinte:

— O assunto é tão grave e de tamanha complexidade que eu seria leviano pretendendo sintetizar tudo isso no limite duma entrevista. É meio desagradável a gente parecer que está fazendo propaganda de suas próprias obras, mas a resposta a certos aspectos da pergunta está implicada em alguns dos meus ensaios, ajustados no Baile das quatro artes e nos Aspectos da literatura brasileira. Qualquer análise psicológica, mesmo leve, da manifestação artística nos convence de que a arte é sempre interessada, e que toda obra de arte é, em última análise, “obra de circunstância”, isto é, nascida duma circunstância ocasional, social ou individualista, a que o artista atribui o seu interesse. Neste sentido, não é a arte que se modifica, mas a qualidade do interesse que leva o artista a artefazer. É quase exclusivamente na civilização cristã que a inflação do individualismo permitiu essa perniciosa vacilação  de qualidade no interesse que, de social que sempre foi, passou muitas vezes a confidencial e individualista. Quanto ao mais, ensaio como a Elegia de abril e O movimento modernista provam que não sou nenhum místico da liberdade de pensamento, mas estou convencido que noções como essa ou como democracia implicam um certo número de princípios sem os quais elas deixam de existir. Não é possível a gente imaginar democracia sem opinião pública, assim como não é possível liberdade de pensamento sem aquisição duma técnica de pensar, coisa muito menos freqüento do que se pode supor.

E explicando melhor o que ficou dito atrás:

— E de fato quando eu considero que uma grande parte da inteligência brasileira vendeu-se aos donos da vida, estou longe de afirmar que ela se rebaixou ao ponto de assinar uma transação com contratos legalizados em cartório. Mas por não possuir uma legítima técnica de pensar, essa intelectualidade se entrega facilmente a sofismas e confusionismos de mil e uma espécies, de que é malignamente a maior essa tal de “arte pura”. Veja bem: não nego a possibilidade nem o valor do que chamamos “arte pura”, estou dizendo é que o intelectual se utiliza dela para se salvaguardar e se livrar de seus deveres morais não só de homem, mas de artista. E o intelectual se retrai da pseudo pureza do seu pensamento – pensamento!... – enquanto a vida se torna cada vez mais infame lá fora, e o homem mais escravo. Mas o intelectual imagina que ele (veja bem: só ele!) não é escravo, pois que o seu pensamento, a sua arte é livre! Pois ele não pode compor uma sinfonia “arte pura”, um soneto sobre o amor ou sobre coisa nenhuma, um quadro com peixe e margaridinhas? Pode sim. “Minha arte é livre”! E o intelectual sofisma que tem liberdade de pensamento, simplesmente porque não tem técnica de pensar suficiente que lhe dê coragem para levar o seu pensamento até o fim. Porque na verdade a pseudo-liberdade dele consistiu em sequestrar das suas manifestações intelectuais todos aqueles assuntos momentosos, cuja qualidade de interesse era social, que o haviam de deixar desagradável com o chefe da repartição em que trabalha, o diretor do jornal em que escreve, e mesmo lhe trariam complicações com as gestapos.

PARTICIPAÇÃO

Ainda em resposta à mesma pergunta, continua Mário de Andrade:

— Porém o intelectual não fica só nisso não. A sua escravização aos donos da vida ainda é mais confusionista e mais indecente. Ele também “participa”. Pois ele já não afirmou, num artigo, que era antinazista? Pois outro dia ele já não aplaudiu todo mundo porque o Brasil entrou em guerra? Ele já não pagou o imposto da tal? Ele já não acho, naquela conversa de bar, que devemos nos precaver contra os possíveis futuros imperialismos das grandes democracias? Tudo isso ele já fez, o herói! E o intelectual descansa, imaginando que o seu dever está cumprido, apenas porque ele cumpriu metade (a metade mais fácil) da sua responsabilidade: a responsabilidade para consigo mesmo. Mas a sua responsabilidade para com o seu público, essa ele não cumpriu nem cumprirá. Porque esta é que é difícil, esta é que impõe mil sacrifícios (de que não é o menos doloroso, reconheço, o sacrifício de sua própria arte), esta responsabilidade é que impõe o sacrifício do seu não-conformismo. Porque o não-conformismo do intelectual não está apenas em gritar e assinar: “Sou antinazista!”, “Sou pela democracia!”, sou isto e mais aquilo. Isto quando é muito tagarela. O não conformismo implica não apenas a reação, mas a ação. E é nesta ação que está a responsabilidade pública do intelectual. A arte é exatamente como a cátedra uma forma de ensinar, uma proposição de verdades, o anseio agente de uma vida melhor. O artista pode não ser político enquanto homem, mas a obra de arte é sempre política enquanto ensinamento e lição; e quando não serve a uma ideologia serve a outra, quando não serve a um partido serve ao seu contrário.

O escritor particulariza ainda mais o seu ponto de vista:

— Basta de falar em “tese”, meu amigo. Demos de barato que a arte é desinteressada, que o artista é normalmente um ser à parte, um indivíduo que pela natureza de seu “status” pode não ser participante, pode ser um “clerc”. Se alguém quiser, eu lhe concedo tudo isto. Mas “normalmente” entenda-se. Eu aceito que um intelectual se isente da guerra franco-prussiana, da guerra russo-japonesa, e até, mais dificilmente já, da guerra do Transval ou da sino-japonesa. Eu aceito que um intelectual brasileiro hesite em tomar partido diante de palmares. Admito, compreendo, aprovo e aplaudo a sua não-participação direta em revoluções como as de 24, 30 e ainda mais 32. Mas se estas guerras e revoluções poderão estar dentro das condições normais da organização social de uma civilização determinada, o mesmo não se dá em certas condições absolutamente anormais da vida, em que é a essência mesma duma civilização que periclita, como na luta entre cristãos e mouros, ou periclita a natureza mesma do homem, como na atual luta contra o nazismo.

Deixa, por fim, bem claro onde quer chegar:

— Em momentos como estes não é possível dúvida: o problema do homem se torna tão decisivo que não existe mais o problema do artista. Não existe mais o problema profissional. O artista não só devem mas tem que desistir de si mesmo. Diante duma situação universal da humanidade como a que atravessamos, os problemas profissionais de indivíduos se tornam tão reles que causam nojo. E o artista que no momento de agora  sobrepões os seus problemas de intelectual aos seus problemas de homem, está se salvaguardando numa confusão que não o nobilita.

— Diretrizes, a 4, n 184, Rio de Janeiro, 6 jan., 1944, p. 1, 25 (Biblioteca Mário de Andrade – IEB – USP.)

Nota da pesquisa:
1. O arrependimento de Mário por ter mandado colaboração sua para Atlântico deve-se a reconhecimento do caráter da publicação: “órgão oficial da cooperação luso-brasileira”.
2. Em 1943 Mário de Andrade está completando 50 anos e os principais órgãos da imprensa brasileira querem homenageá-lo. Na Revista do Globo (Porto Alegre, 22 out. – Recortes – Arquivo Mário de Andrade – IEB – USP) está a entrevista que concedeu a Justino Martins: “O cinquentenário de Mário de Andrade – Informação sobre o autor de Macunaíma”. Como se trata de texto com parcela mínima de declarações de Mário em discurso direto, preferimos não incluí-la nesta coletânea.
3. A entrevista de Francisco de Assim Barbosa figura também em seu livro Testamento de Mário de Andrade e outras reportagens (Rio de Janeiro, MEC, 1954

Vôos da morte

Para se evitar mais sofrimentos devemos largar mão de "sermos" megalomaníacos.

Vários corpos foram arremessados pelo ar caindo no rio prata no Uruguai. Crianças inocentes sendo empaladas vivas ainda, bebês que eram retirados de suas genitoras, homens e mulheres seviciados pelas mãos criminosas e impiedosas de uma ditadura sangrenta e demoníaca.
O vôo da morte, era assim que era conhecida a prática de se lançar (sem nenhum arrependimento e/ou constrangimento) pessoas inocentes pelo ar. Quantos garotos e garotas não foram trucidados nessa passagem horrível que a américa latina viveu. A desculpa é sempre a mesma: "uma revolução aconteceu nas barbas dos estados unidos, não deixaremos disseminar pelo resto da América Latrina." E a barbárie veio logo em seguida.
Os corpos lançados no mar nos vôos da morte não se demoravam perdidos e muito menos eram devorados por tubarões. De acordo com os militares Uruguáios os corpos dos militantes estariam voltando às margens da praia prata, os militares de Montevidéu reclamaram aos seus amigos argentinos que isso estaria causando constrangimento aos turistas, e que seria melhor jogar os presos políticos no oceano atlântico para não voltarem mais. Não adiantou, os corpos insistiam em voltar junto com as correntes marítimas, parecia uma praga, uma sina que eles agora deveriam suportar. Os turistas ficaram roxos de tanto horror ao se depararem com aqueles corpos amarelos e destruídos pela tortura e sevícias.
A ditadura argentina preferia jogar os corpos no oceano do que queimá-los como faziam com os judeus na Alemanha nazista de Hitler. Utilizava esta prática de maneira sistemática. Uma outra forma de acabar com os prisioneiros era amarrá-los e dinamitá-los juntos, além do fuzilamento em massa.
E o facínora Jorge "tigre" Acosta tomou na tarraqueta em Outubro de 2011 levando pro cárcere apenas 640 anos de reclusão em regime fechado. O sujeito que falava com "Jesusinho" que na verdade tava mais pra capetinha passava suas noites perguntando pra entidade no auge de seu delírio a quem ele trucidaria e jogaria do avião na manhã seguinte, tamanha era seu fascínio pelo o escárnio.  


O Cartas de Buenos Aires de hoje é sobre esse sujeito da foto, o piloto argentino Julio Alberto Poch, preso na semana passada dois anos após contar, em uma conversa entre colegas de trabalho, ter participado dos vôos da morte. Nesses vôos, comuns durante a última ditadura na Argentina (1976 a 1983), os prisioneiros eram levados em furgões a um aeroclube, normalmente à noite. Ao chegarem, recebiam uma injeção de Pentotal (um sonífero), eram embarcados em aviões e, após dormirem, jogados ao mar sem roupas, para que não houvesse nenhuma possibilidade de identificação.