Entrevista com Walter Valadares de Castro
Por: Ana Lúcia – Jornal A Nova Democracia
AND: Por que vocês decidiram participar da luta camponesa de Trombas e Formoso?
Valter Waladares, durante a entrevista, na Universidade Federal de Goiás, Goiânia
— Nós sempre tivemos a visão de que se haveria uma revolução operário-camponesa, aqui o nosso papel era fundamentalmente com as massas camponesas. Outro fator importante era que estávamos sob o fogo da vitória da Revolução Chinesa. A Grande Marcha nos causou um entusiasmo enorme, aí houve uma guinada à luta camponesa com o Manifesto de Agosto. Nós acreditávamos que, no Brasil, o movimento camponês era o início de um movimento de libertação nacional. O estado de Goiás era eminentemente agrário e por isso o P.C.B. tinha uma tradição muito grande de lutas no campo. Tanto é que houve uma participação forte do Partido nas lutas camponesas de Ceres, Rialma, Catalão, etc. Esta lutas permitiram o surgimento de líderes camponeses importantes, que puderam ir em auxílio do movimento.
AND: Que fato deflagrou a luta?
— Os camponeses viviam na região há mais de trinta anos. Com a construção de Brasília e da rodovia BR-153, a Belém-Brasília, houve uma valorização grande daquelas terras, que antes dos camponeses ali se instalarem eram inóspitas. Então dois conhecidos e poderosos grileiros da região, o Camapum e o Peroca, resolveram grilar aquelas terras também. Eles montaram todo o grilo e compraram o juiz. Logo após a sentença do juiz, iniciaram-se as intimações para a desocupação das terras. Paralelamente, os grileiros começaram a cobrar uma espécie de “arrendo” dos camponeses porque, afinal, “eles haviam utilizado uma terra que não era deles durante anos e deveriam pagar por isto”. A ação dos grileiros dependia de quem era o camponês, de um eles tomavam toda a produção, de outros eles tomavam a metade.
AND: Como foi o primeiro contato com os camponeses da região?
— Neste tempo, nós tínhamos alguns companheiros em Uruaçu (GO), principalmente o José Sobrinho, que era o nosso grande apoio. O primeiro a tentar contato foi o Geraldo Tibúrcio, que era de Catalão e já atuava no movimento camponês. Ele foi procurar uma pessoa que tinha uma certa liderança na região, o Zé Firmino, mais ou menos em 1953, na região de Coqueiro do Galho, num dos córregos que cortava a região. Ele conseguiu ter a confiança do Firmino e eles combinaram que iriam uns companheiros daqui pra ajudar a organizar a resistência.
AND: Este contato foi feito em nome do P.C.B.?
— Não, foi feito em nome de uma organização de massas da qual Tibúrcio era presidente, a Associação dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas de Goiás.
AND: Em que nível estava a luta neste momento?
— Por enquanto, se dava a tentativa dos oficiais de justiça de fazer as intimações de desocupação e, ao mesmo tempo, o pessoal dos grileiros estava ameaçando buscar o arrendo. Nesse momento a principal resistência era para não entregar a produção para os grileiros.
AND:Quando vocês sentiram que a resistência iria se aprofundar?
— Na verdade, houve um episódio, o do Nego Carreiro, que precipitou um pouco as coisas. O Nego Carreiro era um camponês, natural de Morrinhos (sul do estado), que havia se fixado no Coqueiro de Galho. Ele afirmava que não iria sair daquelas terras e, muito menos, entregar o que ele tinha conseguido produzir com tanto trabalho; dizia que era uma injustiça e fazia muita propaganda para os outros camponeses, no sentido de resisitir à ofensiva dos grileiros. Ocorreu que o Peroca, juntamente com um sargento — que já estava comprado para eliminar o Nego — e alguns soldados foram até a posse do Nego Carreiro. Como ele não estava, mandaram um menino ir chamá-lo. Quando o Nego chegou, o grileiro anunciou qual era o seu intento. Não sei o que o Nego disse, mas levou o sargento a sacar o revólver. Só que o Nego atirava muito bem e tinha um belo 38. Neste momento, o Nego caiu no chão, acertou o sargento no meio da testa e feriu um soldado. O resto do pessoal do grileiro correu, deixando o corpo do sargento abandonado, até que os próprios camponeses o enterraram. As coisas se precipitaram. Aí sentimos a necessidade de mandar logo as pessoas para ajudar. Tínhamos certeza de que viria uma resposta da polícia e dos grileiros, estes inclusive já estavam recrutando um grande número de jagunços. Neste momento, sentimos que a resistência iria se aprofundar, se tornar armada. Aí foi para lá inicialmente o Geraldão (líder camponês da Barranca, região da Colônia agrícola de Ceres); o Soares e o Zé (antigo mascate, ligado ao movimento camponês). Lá, eles começaram a organizar a associação, conversaram com os camponeses, fizeram algumas reuniões. Nesta época, nós prevíamos que as coisas se complicariam ainda mais porque era tempo de colheita e o Camapum estava mobilizando os jagunços para confiscar a produção.
AND: Quando você foi para a região?
— Eu era secretário do Partido em Goiânia e me perguntaram se eu não queria ir para a região. Aceitei a tarefa e fomos até Anápolis (55 km de Goiânia), onde um companheiro tinha um caminhão que nós enchemos de armas e munições. Logo após minha chegada, começamos a falar para os camponeses da necessidade de nos prepararmos para enfrentar os jagunços. No início, tínhamos uma visão romântica, pensávamos apenas em termos de jagunços, então estava tudo bem, tudo era bom...
AND: Como foi esta “preparação para a luta armada” ?
— Nós realizamos alguns treinamentos militares, incluindo alguma coisa de tiro...
AND: Nesta fase houve algum combate?
— A primeira experiência dos camponeses foi no início de 1954. Nesta época soubemos que os grileiros estavam enviando um caminhão para tomar a produção dos camponeses, na região do Coqueiro de Galho. Combinamos de fazer uma “tucaia” no colchete que havia na estrada porque, necessariamente, eles tinham que parar o caminhão para abrir o colchete. Aí ficaria mais fácil pegá-los. Dividimos em dois grupos: um foi fazer a “tucaia” e o outro ficou a uma certa distância com apoio logístico. Os camponeses decidiram que o melhor atirador deveria atirar na “boléia” do caminhão para atingir o motorista e o oficial graduado e outros atirariam na carroceria para atacar os jagunços. Quase tudo ocorreu. O tiro na boléia foi um tiro certeiro porque era mais consciente. Então morreu o filho do Camapum e um outro jagunço. E o pessoal atirou naqueles jagunços que estavam lá em cima. Para você ter idéia, foi uma quantidade imensa de tiro, mas não acertou ninguém. O motorista deu uma ré, saiu com os pneus furados e se mandou. Os camponeses expulsaram os jagunços.
AND: A expulsão dos jagunços foi uma grande vitória. Quais as consequências?
— Depois deste combate as coisas mudaram. Analisamos que havíamos de nos preparar melhor e buscar mais apoio. Muito provavelmente, viriam, não só os jagunços, mas a polícia no próximo ataque. Também aumentamos a politização. Falávamos do programa da Revolução Brasileira, da vitória da Revolução Chinesa, líamos um texto do Presidente Mao Tsetung, publicado na Revista Problemas, sobre a guerra de guerrilha etc. Nos reunimos e concluímos: temos que nos preparar para uma luta de outro nível. Nós tínhamos combinado com a direção do Partido que tão logo chegassem as notícias do primeiro choque, o Partido mandaria reforço de armas e, se possível, de mais alguns quadros dirigentes para uma cidade à esquerda de Porangatu, na rodovia, lá em Mutunópolis, porque nós tínhamos um companheiro lá que era dono de uma farmácia. Decidiu-se que iria lá um camponês que conhecia a região muito bem, além de mim.
AND: Foi aí que ocorreu o famoso episódio do “mimeógrafo”, pelo qual você ficou conhecido?
— A história não foi bem assim. Andamos uns 70 Kms a pé. Chegamos à casa do companheiro Edson. Combinamos que ele iria ver se os companheiros de Goiânia estavam chegando, mas os companheiros não chegavam... Vieram dois companheiros numa caminhonete de um motorista daqui (Goiânia) trazendo armas, munição, miméografo, papel, etc. Parece que eles ficaram meio nervosos e, em alguma coisa que não existia, eles viram um piquete de soldados na estrada que ia para Mutunópolis e aí pararam, descarregaram a caminhonete e fizeram uma camuflagem ao pé de uma árvore. Como havia um companheiro da direção estadual, ele sabia que havia uma base do Partido naquela região de campo e foi lá fazer o contato. Quando o contato conseguiu ir à farmácia nos procurar eu já havia me atrasado vários dias. Fui à fazenda onde estavam os outros militantes e decidimos quem iria tentar furar o cerco para levar o material. No fim, foram quatro, cinco pessoas. Aí andamos mais 70 Km a pé, carregando um monte de armamentos, capangas cheias de balas de fuzil, papel, tinta e o danado do mimeógrafo. Quando chegamos, com vários dias de atraso, os companheiros não estavam mais no ponto combinado e já havia polícia e jagunço para todos os lados. No final, conseguimos chegar bem com os materiais.
AND: Houve algum confronto com os policiais e jagunços que haviam no local?
— Não. A polícia queria intimidar os camponeses, principalmente as mulheres, dizendo “se o seu marido abandonar esses comunistas, não vai haver nada, mas se não abandonar vai morrer”. Outros diziam que o governo ia soltar uma bomba atômica, que todo mundo iria morrer. Depois disso, a cada manhã, víamos que duas, três famílias haviam deixado a luta. Chegou a um ponto em que estávamos reduzidos a oito, todos de fora.
AND: Como vocês conseguiram reverter a situação?
— Montamos acampamento na posse de um companheiro e ficamos lá até fazermos contato com o Zé Porfírio. Ele era um líder em Trombas, já tinha até reivindicado as terras do Formoso ao Getúlio... Depois que fizemos este contato combinamos de concentrar o trabalho na região de Trombas.
AND: Como foi a construção do trabalho na região de Trombas?
— Começamos a trabalhar no dia seguinte. A nossa meta era conseguir a confiança dos camponeses para que eles aceitassem o nosso apoio. A proposta era que os camponeses se unissem numa associação para resistir aos grileiros e à polícia que estava “acantonada” no Formoso. Fazíamos reuniões no fim de semana. Imprimíamos um folheto de acordo com a realidade para discuti-lo com os camponeses, nos dividíamos em duplas e íamos para os dois lados do córrego. Os soldados e os jagunços estavam por todos os lados. Então, entrávamos pelos fundos das casas dos camponeses. Como quase todo mundo ali era analfabeto, a gente lia o panfleto e fazia uma explicação para a família e deixava uma cópia na casa. Eles o escondiam embaixo do colchão e quando chegava outra pessoa que soubesse ler, eles davam com todo o prazer para que a pessoa pudesse lê-lo. Fizemos este trabalho de massas, mais ou menos clandestino, por alguns meses. O trabalho de politização das massas camponesas dependia, também, de conseguir furar o cerco policial e dos jagunços que cercavam as redondezas.
AND: E a criação da associação?
— Quando sentimos que já havia uma aceitação dos camponeses e, paralelamente, apoio de outras localidades, marcamos uma reunião para criar a associação dentro do Formoso, onde estavam as tropas da polícia. Os que não eram prata da casa como eu, o Geraldão, o José Soares não participaram da reunião para evitar provocações. Montamos ao lado um acampamento de apoio logístico, armado. No caso de haver alguma resistência, a gente poderia apoiar. O Porfírio entrou à frente dos camponeses no Formoso. Fizeram comícios e criaram a associação. Passamos, então, de um movimento clandestino de militantes para um movimento de massas, uma associação que tinha vários elementos que não tinham nada a ver com o Partido.
AND: Em que consistiu o apoio que os camponeses receberam?
— O trabalho para conseguir aliados tinha se concentrado em levantar o movimento estudantil e o sindicato dos trabalhadores da construção civil. Eles faziam manifestações de apoio aos camponeses... Na Assembléia Legislativa nós tivemos o apoio de alguns deputados que não tinham nenhuma participação nos movimentos populares, mas que eram contra o grilo e que formaram a comissão, que concluiu pela existência do grilo e a necessidade do governo intervir. Um deles, mais progressista, sobrevoou a área, soltando boletins de apoio aos camponeses. Após este ato de ousadia chamamos a reunião. Tínhamos também, a nosso favor, o próprio procurador do Estado, o Everardo de Souza, que não nutria nenhuma simpatia com o movimento, mas era contra a grilagem e tinha entrado com uma ação a favor da retomada das terras pelo Estado.
AND: Quanto à associação, como os grileiros reagiram ?
— Depois da criação da associação voltamos a nos preparar para um choque ainda mais violento com a polícia e os jagunços. Mas o nível de organização já era bem maior, englobando as massas. Organizamos piquetes e quando a polícia e os jagunços voltaram a associação já tinha força para enfrentá-los. Aí ninguém mais teve sossego.
AND: Que tipo de organização enfrentou a reação nesta nova fase?
— Instalamos duplas e sempre com a preocupação de não travar combates longos, não liquidar a polícia, e a nossa preocupação era baseada na experiência do Presidente Mao Tse-tung, de que quando o inimigo ataca, nós recuamos; quando o inimigo estaciona, nós fustigamos; quando ele recua, nós atacamos. Houve até justiçamento de um informante da polícia — com julgamento, é claro.
AND: A Guerrilha de Trombas e Formoso foi uma das mais organizadas e consequentes lutas camponesas do período, e até por isso, a única vitoriosa. Houve um acordo com o governo para que os camponeses ficassem com as terras?
— Os procuradores do Estado já tinham dado um parecer contra o registro, considerando a grilagem. O juiz de Uruaçu estava comprometido (corrupto). Os procuradores tinham entrado, em nome do Estado, pela anulação da venda. E como o movimento aqui na cidade fez muita pressão, o governo acabou por distribuir as terras. Temos que considerar que era um
movimento nitidamente de grileiros e como estava clara a existência do crime era muito mais fácil, do que por exemplo, se fosse um movimento na fazenda do Ubirajara Caiado (tio do Ronaldo Caiado) que mantinha regime de escravidão. Aí, de forma alguma iriam permitir que o governo cedesse. O grileiro tem menos força que o latifundiário.
AND: Como se organizaram os camponeses após a conquista da vitória? Há quem diga que se instalou na região um verdadeiro “governo popular”...
— A Associação dos Lavradores do Formoso e de Trombas era realmente a grande força. Devido à vitória do movimento, o prefeito era da associação e a maioria da câmara dos vereadores. Naturalmente, a associação dominava a política na região.
AND: Estes cargos políticos eram reconhecidos pelo Estado?
— Era tudo legal. Os camponeses receberam até o título da terra.
AND: O Zé Porfírio foi o líder mais conhecido da luta camponesa. Pode nos falar um pouco sobre ele?
— Eu, por sorte, tinha como companheiro de dupla o Zé Porfírio. Andava com ele a semana inteira. Ele era um tipo formidável, muito inteligente, corajoso. Sabia ler, escrever. Ele era um verdadeiro dirigente de massas. Eu me lembro que quando a gente andava lá pelo Formoso, eu tinha a preocupação de dar ao Porfírio algumas noções do marxismo-leninismo. Nós andávamos muito e conversávamos muito também. Nós tínhamos que entrar no mato, arrumar um lugar para dormir, esperar o dia clarear para poder sair novamente. Então, nós tínhamos muito o que conversar. Ao mesmo tempo em que eu politizava o Zé Pofírio, eu me deliciava com as histórias dele. Ele conhecia quase toda a literatura de cordel, os trovadores do nordeste. O que mais me marcou foi uma vez, antes da gente criar a associação, em Trombas. Ao entrarmos para distribuir os folhetos na segunda casa, o morador falou: “A polícia está lá na pensão”. Ele disse: “Nós não podemos mostrar medo. Nós temos que continuar e temos que entrar na pensão”. Quando chegamos na pensão, o Zé Porfírio fez um pequeno discurso, deixamos os panfletos e saímos. O Zé era um camponês de uma coragem a toda prova, espetacular.
AND: Durante a luta camponesa de Trombas e Formoso houve a elevação da consciência da luta pela terra (individual, econômica), para a destruição de todo o latifúndio, mais política ?
— Não. A luta se restringiu, acabou com a conquista do pedaço de chão por cada camponês. Mas o nosso sonho inicial era o de transformar a luta dos posseiros do Formoso no início da luta armada pela libertação nacional. Se em relação ao nível de consciência nós não tenhamos conseguido dar um passo à frente, do ponto de vista da influência tivemos um trabalho muito importante. No Formoso existia o problema da posse da terra e da luta contra os policiais e jagunços. Mas a luta contra o latifúndio, como um todo, acabou por não ser tocada. O surgimento da luta e a vitória dos camponeses do Formoso, a conformação da associação praticamente como o órgão dirigente do município, tudo isso repercutiu em todas as cidades do estado. Em outras cidades foi mais fácil criar uma associação porque eles sabiam da vitória do Formoso e se estabeleceu um clima amistoso.
AND: Apesar da luta de Trombas e Formoso não ter conseguido se transformar no início do movimento de libertação nacional, você ainda acredita que a Revolução é única saída para a miséria em que está mergulhado o nosso povo?
— A Revolução não é um plano de vida individual, é uma necessidade coletiva. Independente de eu estar vivo, a Revolução vai acontecer porque é uma necessidade do povo brasileiro para que possa viver com dignidade e de forma justa.